Ressentimento e Hospitalidade

Igor Miguel
6 min readMay 27, 2020

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Muitos irmãos conservadores engajados em teologia pública não se posicionam sobre temas que são cuidadosamente escolhidos por cristãos e não-cristãos no espectro mais progressista por um motivo simples: são terrenos minados.

Mesmo que, em seus próprios termos, fossem teologicamente precisos na denúncia, análise e posicionamento público, alguns progressistas não admitiriam que irmãos teologicamente conservadores emitissem qualquer opinião sobre seus temas prediletos.

Eles julgarão as vírgulas e dissecarão sem piedade cada parágrafo. Não há tolerância aqui. Os autores, senão se posicionarem com as costumeiras categorias de análise e não usarem o vocabulário normatizado, serão descartados, o que é, de certa maneira, previsível. Não tenho dúvida que irmãos mais conservadores continuarão entrincheirados por uma esquerda que se apropriou de casos sérios, mas que foram recortados, costurados e recontextualizados em um determinada narrativa.

O assassinato de Marielle por milicianos e o assassinato de João Pedro são seríssimos. Cristãos teologicamente conservadores teriam muito a dizer sobre cada um desses temas. A agressão à democracia representativa e a violência contra uma criança negra de periferia afligem qualquer senso cristão de justiça e compaixão. Contudo, como esses temas se tornaram exclusivos de um determinado grupo, qualquer palavra de fora será tratada como um estranho dialeto, qualquer comentário que não seja pronunciado com o ventre será sumariamente rechaçado.

Como muita gente à esquerda também é intimidadora e raivosa, parece que muitos pastores sérios continuarão quietos, fazendo o que fazem prioritariamente, cuidando do rebanho de Jesus, e se arriscando muito pouco a entrar em uma seara cheia de armadilhas. Não chego no mérito de que alguns se silenciam realmente por causa de suas predileções políticas. Mas, ouso dizer, que uma maioria não entra em tais temas por presumir que será confundida com grupos que não quer ser associada. Não os julgo por isso, corro este risco aqui.

Por isso, prudência e paciência com esses irmãos seriam indispensáveis antes de lhes dirigir qualquer cobrança ou acusação de silêncio ou indiferença. Agora, receio que poucos irmãos, no espectro mais à esquerda, estejam dispostos a exercer tal compaixão. O que a meu ver, só expressa que estão cativos de sua própria visceralidade.

A propósito, poucos que militam estão conscientes das forças psíquicas envolvidas em certas posturas políticas. Análises psico-políticas como as desenvolvidas por Guilherme de Carvalho são essenciais em um cenário que parece ameaçar o tecido social. Principalmente sua fala baseada na noção de “inversão moral” de Michael Polany. Uma amostragem do fenômeno tratado, foi um experiência recente que eu mesmo vivenciei.

Recebi comentários bem indispostos em resposta a uma postagem com um breve texto que fiz sobre o princípio cristão de hospitalidade como resposta à segregação e a exclusão racista. Por hospitalidade entendo o princípio bíblico de que o mundo é uma habitação que pertence a Deus, sendo Ele o anfitrião e que toda criatura é convidada a habitar em seus domínios como hóspede e não como dona (Lv 25.23). Todos são bem vindos, todos.

Mencionei a inadequação da linguagem de ocupação. Pois nem brancos ou negros devem ‘ocupar’ o mundo como que invadindo-o. Supremacistas brancos americanos, uma vez, segregaram e zonearam seu mundo por pura pretensão e arrogância, foram rebeldes contra o soberano Senhor do mundo. Negros não devem pedir licença, simplesmente devem entrar na ‘tenda de Deus’ e aceitarem o convite do Criador e se sentarem à sua mesa e à sua sombra.

Em um mundo cujo anfitrião é o próprio Deus, a linguagem teológica da hospitalidade sugere uma alternativa à retórica baseada em mero ressentimento. E, observe, não quero, como fui interpretado, aliviar a gravidade e a pecaminosidade do racismo contra negros. O intento é deixar claro que racismo e a segregação racial, além de ofensas contra uma criatura à imagem de Deus, são também afrontas contra o próprio Deus, um sério agravante.

O racismo é um fato e é pecaminoso, mas para cristãos, não pode e não deve ser tratado baseado em raiva e rancor. É compreensível que tais sentimentos brotem em quem é vilipendiado, marginalizado, enfeiado, objeto de desconfiança, que trava lutas homéricas para chegar onde não-negros chegam com mais facilidade. Um cristão negro deve ter consciência de que está sob pressão, e eventualmente, será vítima de ofensas e até exclusão objetiva, no entanto, ele não pode em hipótese alguma dar uma resposta secularizada e não-cristã ao problema.

Antes de assumir o profetismo e a denúncia, ele deve exorcizar toda raiva inoculada pela injustiça alheia, o que só é possível pela força redentora, reconciliadora e justificadora do Evangelho de Jesus Cristo.

Em Cristo, todo mal já está julgado. Somente nesta posição de justificado e regenerado, pode o cristão negro, ou não, se posicionar com sabedoria e tom profético à iniquidade e injustiças perpetradas por instituições, indivíduos ou dinâmicas culturais racistas. Ele pode se posicionar sobre a natureza do racismo, em franca denúncia, sempre que necessário. Os dispostos ou chamados à luta devem se esforçar em reconhecer e descrever os dispositivos discursivos que retroalimentam estereótipos racistas e tratar, em algum nível, o fenômeno da invisibilidade da população negra em seus diversos contextos sociais e culturais. E, também, devem, por causa do Evangelho, promover ambientes de reconciliação inter-racial, reparação e criar pontes de superação da “inimizade” (Ef 2.16).

Portanto, vale uma ressalva: Não acho que todo cristão negro consiga fazê-lo. De fato, muitos estão mais preocupados em ser discípulos de Cristo em níveis mais prosaicos e ordinários, e eles não devem ser julgados ou acusados de alienação por isso. Afinal, “do que adianta ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Mt 16.26). Eles podem estar certos nas escolhas que fizeram. Mas aos chamados à luta e ao profetismo, sigo com a recomendação.

Uma vez no lugar onde ninguém pode ‘intentar acusação contra os eleitos de Deus’ (Rm 8.33) e na posição onde o cristão negro justificado não tem que dar qualquer justificativa sobre a cor de sua pele, uma resposta deve ser dada, porém, de um lugar melhor. Ele deve se posicionar e valer-se dos meios disponíveis para reivindicar seu lugar no mundo de Deus com a cor, a história, a ancestralidade e as idiossincrasias que Deus lhe deu. Mas nunca como um intruso que ocupa, mas como um hóspede que habita. Ele reside os domínios de Deus, a convite de Deus e com outras criaturas de Deus.

Considere que a luta baseada em ressentimento, apesar de sedutora, é carregada de justiça própria e incapaz de obedecer a recomendação apostólica: “não vos vingueis a vós mesmo, amados, mas dai lugar à ira; porque está escrito: A mim me pertence a vingança; eu é que retribuirei, diz o Senhor […] não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem.” (Rm 12.19,21). O coração está tão carregado e ansioso que ele é incapaz de prudentemente se distanciar e confiar que Deus pode fazer vingança às injustiças deste mundo.

A ansiedade é claramente percebida em um tipo de neo-farisaísmo que insiste em fazer julgamento alheio baseado em postagens e tuítes. A justiça da internet é arbitrária, manipulável, seletiva e implacável. Ela não respeita reputação alheia.

Uma alternativa é incorporar outra postura. Seja lá qual for a luta do cristão, que ele o faça com aquele sorriso no canto da boca, típico de alguém que sabe para onde o enredo da história está caminhando. O coração deve estar pacificado por Jesus antes da missão. Um cristão deve dar as caras transbordando de esperança e não do desespero que reproduz a violência. Sua “presença fiel” é simultaneamente um sinal de julgamento e redenção. Sua peregrinação no mundo remete à marcha abraâmica. Seus gestos são sinalizações escatológicas de que o mundo tem um rumo e se dirige a Cristo (Ap 11.15).

Enfim, escolha o caminho do universal sacerdócio dos santos, da compaixão que evangeliza, reconcilia e serve. Desconfie de seus sentimentos e mantenha o coração firme e unido a Jesus Cristo. Lamente a dor do exílio e do desterro, profetize, mas, habite à sombra da Árvore da Vida, e lá, aprenda a conviver e comungar com todos:

“Todas as aves do céu se aninhavam nos seus ramos, todos os animais do campo geravam debaixo da sua fronde, e todos os grandes povos se assentavam à sua sombra.” (Ez 31.6)

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Igor Miguel

Teólogo, pedagogo (UEMG), mestre em letras/hebraico (USP), doutorando em educação (PUC MINAS) e pastor na Igreja Esperança em BH. Saiba+ em igormiguel.com.br